Passei o dia arrasado. Minha gata Shiva foi internada, muito doente. Aconteceu de uma hora para outra. Ainda ontem, como em todas as madrugadas, fui buscá-la na sala. Dormia no sofá, enrolada em si mesma, com a cabeça entre as patas. Ronronou em meu colo enquanto a levei até meu quarto. Cocei seus pelos e repeti minhas eternas declarações de amor, que ela aceitou com suaves mordidinhas nos meus dedos. Sua raça? American short hair, imortalizada pelo personagem Garfield. De pelo escuro, sempre eriçado, olhos verdes, que gata encantadora! O macho, Merlin, é exatamente igual ao Garfield, inclusive na cor de mel. Ambos chegaram à minha vida numa surpresa que fiz a mim mesmo. Nunca tinha pensado em ter gatos até vê-los na vitrine de um pet shop. Comprei-os num impulso, como já ocorreu com outras boas decisões de minha vida.
Sempre tive cães. Aos poucos me acostumei com a dinâmica felina. Gatos são independentes. Não imploram amor. Mas possuem uma compreensão inexplicável de nossas emoções. Toda vez que tive um problema, Shiva veio dormir na poltrona ao lado de minha cama. Ainda me lembro do dia em que minha vida deu uma grande guinada. Meu estado de espírito era caótico. Quando entrei em meu quarto, Shiva e Merlin estavam sentados na cama. E me encaravam, sérios. Pareciam ter a noção exata de quanto eu precisava de solidariedade.
Fui o tipo de garoto que adotava filhotinhos das ruas, para terror de minha mãe. Adoro cães. Sofri imensamente com a morte de meu cachorro Uno, há alguns anos. Tanto que escrevi um livro sobre minha vida com ele. Existem teses para explicar o relacionamento entre homens e animais. Não me importam muito. Sou capaz de ver a base intangível sobre a qual se apoiam esse laços. É o amor em seu estado mais puro, vivido de forma intensa e profunda. A convivência, o olhar que um bicho troca com a gente, é especial. Já soube a história de um vira-lata que protegia ferozmente seu dono, um mendigo, durante a noite, apesar da vida difícil que compartilhavam. Para muitas pessoas solitárias, a única companhia é o animalzinho de estimação. Na África do Sul, onde a interação entre gente e animais selvagens é bem maior do que se pensa, conheci um homem que criou um leopardo. Durante mais de dez anos, o bicho permaneceu tão amigável quanto um gato. O dono e até as visitas lhe coçavam as costas. Um dia, subitamente, a alma selvagem superou o verniz da domesticidade. Atacou o dono. Foi abatido a tiros pelo filho que ouviu os gritos do pai. Apesar das graves sequelas do ataque, o sul-africano ainda lamentava a perda do amigo, tempos depois.
Hoje acordei tarde. Quando tomei meu café da manhã, Shiva ainda se aproximou da mesa, com Merlin, e me fez um pouco de companhia. Saí. Fui à livraria, depois comi um sanduíche. Meu celular tocou. Shiva fora levada às pressas para o veterinário. Quis saber o que houve.
– Primeiro, ela não quis comer a ração – disse minha funcionária, Célia. Depois, fui escovar seus pelos. Quando peguei a Shiva no colo, ela me olhou chorando.
Não estranhei. Em momentos de melancolia ou sofrimento, Shiva sempre foi pródiga em lágrimas que escorriam por suas faces peludas.
– Depois, vomitou sangue.
O diagnóstico foi surpreendente: edema pulmonar. Perguntei ao doutor:
– Mas assim, de uma hora para outra?
– Em gatos, a cardiopatia pode se manifestar de surpresa.
Ficou no balão de oxigênio. Mais calmo, fui jantar com meu amigo Bruno. Falamos sobre a vida.
– Hoje não é um dia bom – reflito.
Antes de os pratos chegarem, o celular toca novamente.
– Ela não resistiu. Teve uma parada cardíaca.
Pedimos a conta. Vamos até o veterinário. Seu corpinho permanece na mesa no consultório. Eu a toco. Ainda está quente. Engulo a dor. Acaricio seus pelos, muitas vezes, lentamente, durante um longo tempo.
– Você era uma dama, Shiva. Uma dama.
Meu assistente, Felipe, chega. Tomamos as decisões práticas. Será cremada. Quero as cinzas para espalhar embaixo de uma árvore bonita, cujas flores lembrarão minha gatinha tão doce. Chega o momento da despedida. Eu a acaricio mais uma vez. E me curvo. Beijo seu rostinho imóvel.
Volto para casa. Bruno pergunta se quero conversar. Prefiro ficar sozinho.
Entro em casa. A empregada está trancada no quarto. Ouço seus soluços. Merlin se aproxima, está meio perdido. Sofre a perda, mesmo que só saiba explicar o mundo pelas sensações.
Venho para o escritório. Sento em minha poltrona. Choro.
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